Lei de Cotas, 10 anos: uma análise de conjuntura - Lei de Cotas, 10 anos: uma análise de conjuntura pt.3
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ACS - Como é o desempenho acadêmico dos/as alunos/as cotistas na UFSB? Há algum estudo interno a respeito?
Pró-Reitor Sandro Ferreira - Nós temos uma percepção a partir de alguns dados, e eu particularmente desenvolvi um estudo em 2015 quando a primeira turma de ingressantes na UFSB havia completado o primeiro ciclo de um ano de formação, sobretudo dos alunos que eram egressos de colégios universitários, ou que estavam na Area Básica de Ingresso e nos bacharelados interdisciplinares. Naquele momento era possível perceber que o rendimento acadêmico desses alunos era muito semelhante [aos não-cotistas]. Às vezes, você tinha uma pequena variação favorável aos estudantes não-cotistas, ingressantes por ampla concorrência, que era de centésimos de nota. Então não era uma avaliação que sustentasse aquele argumento, que foi muito forte nos primeiros debates sobre a implementação de cotas no Brasil, de que estudantes cotistas têm rendimento acadêmico inferior ao de estudantes não-cotistas.
Os dados que a gente consegue identificar a partir de múltiplos estudos desenvolvidos pela própria comunidade acadêmica demonstram que o rendimento acadêmico não difere entre estudantes cotistas e não-cotistas. Algumas universidades têm estudos mais aprofundados que até apontam que, em alguns casos, o cotista consegue ter até um rendimento e um engajamento com a universidade maior do que o não-cotista - o que prova que não há qualquer inferioridade do cotista quando ele ingressa pela cota; e que o instrumento da cota tem esse potencial simbólico, que ele tem essa lógica da reserva de vagas, mas muitas vezes a diferença que se estabelece no acesso do cotista para o não-cotista é muito pequena.
Isso também acaba se verificando dentro do rendimento acadêmico ao longo da universidade, mas também é possível dizer que alguns fatores impactam mais os cotistas que os não-cotistas. Por exemplo, o tempo de conclusão do curso: cotistas têm a possibilidade de ter de demorar um pouco mais tempo para fechar o curso, por conta das dificuldades específicas das pessoas mais pobres; então, têm de trabalhar o dia todo e isso acaba impactando na qualidade da adesão e da atenção à aula. Para fazer curso noturno em áreas mais distantes da universidade tem que depender de transporte, chegar atrasado e isso acaba impactando, o que nos leva a perceber que o apoio à permanência é fundamental para o sucesso da Lei de Cotas e para evitar essas pequenas desigualdades nas trajetórias entre cotista e não-cotista, que ainda é possível identificar. Mesmo que não haja diferença no rendimento, é possível dizer que há diferença nas trajetórias. Essas dificuldades específicas dos cotistas podem ser superadas a partir de uma política de permanência mais enfática para esse segmento.
Hoje a UFSB aplica uma política de permanência cuidadosa, que administra recursos muito pequenos dos PNAES [Programa Nacional de Assistência Estudantil], mas que tem buscado construir os instrumentos de apoio à permanência focalizados, atendendo as demandas que a gente consegue identificar como prioritárias e não só aquelas que são clássicas, como a demanda por moradia, alimentação e transporte. Mas nós ainda somos uma universidade que não tem restaurante universitário, e isso impacta na qualidade da promoção da permanência estudantil, sobretudo do segmento de estudantes cotistas. Ainda precisamos de estudos mais aprofundados acerca da trajetória dos cotistas na UFSB, do impacto desses no total de titulados, do problema da evasão entre cotistas e não-cotistas. A gente tem alguns dados específicos sobre indígenas, sobre quilombolas, mas não temos ainda um estudo local. Faltam recursos, instrumentos e servidores para desenvolver um estudo mais amplo que avalia os impactos e os resultados obtidos pela UFSB na sua política de ação afirmativa.
ACS - A UFSB criou vagas supranumerárias para formar políticas afirmativas e atender públicos específicos, como as pessoas trans, povos ciganos. Que perspectivas se pode vislumbrar para a área de Ações Afirmativas da instituição para os próximos anos?
Pró-Reitor Sandro Ferreira - A gente conseguiu construir na UFSB, em pouco tempo, um processo de avaliação da sua própria política de ação afirmativa que é muito intenso. É importante destacar que o principal estopim de avaliação interna nasce com os próprios estudantes. O próprio debate interno sobre a relação entre primeiro e segundo ciclo estimulou os estudantes da universidade a debaterem o modelo de ações afirmativas da UFSB, o que acabou promovendo as mudanças nas resoluções. Tive a oportunidade de acompanhar, já como gestor a partir de 2018, fim de 2017, os ajustes de toda essa base normativa, mas as propostas principais que foram adotadas foram resultados desse primeiro processo. Então, a ampliação da porcentagem para 75% é bastante significativa, importante para a universidade e é fruto [da mobilização] dos estudantes; adoção da reserva de vagas para pessoas trans é fruto da intervenção dos estudantes e de outros pesquisadores da universidade.
Quando eu assumi a pró-reitoria e passei a trabalhar na análise dessa base normativa, o trabalho era ajustar a execução dessas políticas, alinhá-las à previsão da própria Lei de Cotas, e pensar inclusive as políticas de permanência para esse segmento. O processo foi muito qualificado e acabou levando também, nesse processo de revisão dos instrumentos, ao fortalecimento, à valorização e à mobilização de alguns órgãos que compõem os papéis importantes nesse debate qualificado. Pode se destacar, por exemplo, o papel da CPAF [Comissão de Políticas Afirmativas] - que é um órgão interno da PROAF - que cumpre um papel importante nos primeiros debates sobre a revisão das ações afirmativas da UFSB, e mais recentemente, do CAPC, o Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas, que também reúne um conjunto de pesquisadores, eu diria a massa crítica da universidade interessada no tema, para acompanhar e qualificar os instrumentos, qualificar e controlar as políticas por meio, por exemplo, das bancas de heteroidentificação.
Depois desse primeiro momento, houve a adoção das vagas supranumerárias para as populações ciganas, o que impôs à gente outras medidas para fazer valer essa reserva de vagas, e mais recentemente, a adoção da reserva de vagas para pessoa em privação de liberdade, pessoas egressas do sistema prisional (que é a primeira experiência no Brasil, já que nenhuma outra universidade pública brasileira tem política de ingresso por cotas a esse segmento) e pessoas refugiadas, que é um segmento que já tem experiências nas universidades brasileiras. Então, a gente conseguiu hoje construir uma política robusta, ousada, exemplo para muitas universidades e que inclusive oferece um forte laboratório para avaliar o peso das ações afirmativas. Só que, à medida que a gente qualifica essa política, o desafio vai aumentando: o desafio do acompanhamento, o desafio da avaliação dessas políticas adotadas, para que elas obtenham sucesso.
O que eu tenho percebido, e espero poder atuar na condição de gestor em diálogo com CAPC e os outros órgãos, é que a principal tarefa agora da UFSB, diante da sua política de ações afirmativas, é consolidar o que foi conquistado nos instrumentos normativos que foram criados. A gente conseguiu trazer para dentro do Estatuto da UFSB a previsão das Ações Afirmativas enquanto um princípio da universidade - uma característica também rara, poucas universidades trazem em seus estatutos referências explícitas ao papel das ações afirmativas. A gente conseguiu construir uma ótima resolução recentemente ajustada de ações afirmativas. Criamos uma resolução do comitê, que é o nosso instrumento de controle da política de controle social autônomo da política, e isso também exige ainda um esforço constante por parte da CAPC para qualificar os instrumentos, promover as bancas [de heteroidentificação], para fazer esse trabalho, que é extremamente importante e complexo, da melhor maneira possível. Então isso, para mim, é um desafio, tal qual o desafio da permanência de segmentos específicos, especialmente das populações trans, que ainda têm demandado da PROAF esforços contínuos na tentativa de criar políticas focadas nesse segmento.
Há o acompanhamento das pessoas com deficiência, que também é um desafio e que a gente depende ainda de estrutura, de equipe de servidores especializados para ampliar nossa capacidade de não só trazer esses alunos para dentro da universidade por meio das costas, mas também de apoiar a sua permanência. Agora temos o desafio do acompanhamento das pessoas privadas de liberdade, que temos os primeiros estudantes aprovados por essa cota, que também tem um desafio gigante no modelo de acompanhamento e de apoio à permanência. Além da valorização do segmento expressivo de estudantes indígenas e quilombolas, que provavelmente é nosso maior sucesso da política de Ações Afirmativas, em termos de números, mas que também demandam outras estratégias de atenção, de meios de apoio à permanência e de valorização dos seus saberes no cotidiano da universidade.
Temos as modalidades de cotas na graduação que se consolidam e queremos que se firmem na pós-graduação da UFSB. Há uma experiência muito positiva de aplicação de políticas de cotas na nossa pós-graduação, e agora eles devem em breve entrar nesse debate junto com a PROPPG [Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação] para criação de uma resolução que torne formalmente a política de ações afirmativas na pós-graduação enquanto instrumento legal, não dependendo apenas da vontade de cada programa de pós-graduação para a sua aplicação. Então, para o próximo período, esses são desafios: monitoramento e análise dos resultados obtidos até aqui para que a gente tenha aí mais de 20 anos para alcançar os objetivos centrais dessa política, que são a transformação da sociedade brasileira e o enfrentamento da desigualdade racial e da desigualdade educacional, para que sejam efetivamente superados com a contribuição dessa importante política pública.
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