Lei de Cotas, 10 anos: uma análise de conjuntura - Lei de Cotas, 10 anos: uma análise de conjuntura pt.2
Índice de Artigos
ACS - A respeito da revisão e da prorrogação da vigência da lei de Cotas, como o senhor considera que deve ser feita? Que cuidados são necessários?
Pró-Reitor Sandro Ferreira - A Lei de Cotas cria uma uma expectativa de que, após dez anos, ela passasse por um processo de análise dos seus resultados. Alguns confundem esse dispositivo enquanto uma data de encerramento da Lei de Cotas, o que na verdade não é o que está dito na lei. O que está dito é que após dez anos seria necessário avaliar os resultados obtidos. Isso implicaria possivelmente até na possibilidade de encerrar a experiência, caso os resultados esperados fossem totalmente alcançados. Até porque toda a política afirmativa, no seu sentido conceitual, tem uma expectativa de um fim em si mesmo; ela se pretende a corrigir uma determinada situação e, ao cumprir esse objetivo, deixar de ser necessária enquanto instrumento. Não é que a Lei de Cotas e as políticas afirmativas sejam eternas. Porém, para que elas deixam de ser necessárias, as transformações desejadas devem ser evidentes e significativas.
E como eu falava antes, é possível perceber mudanças na universidade, mas as expectativas de fato que a lei encerra, como por exemplo, produzir um processo de reparação das desigualdades educacionais e, consequentemente, das desigualdades econômicas que foram impostas como resultado da escravidão no Brasil, não vão ser resolvidas tão rapidamente. Então, é evidente a necessidade de prorrogação, porque não há nenhuma dúvida de que a estrutura social brasileira ainda não foi transformada a ponto de justificar o fim da Lei de Cotas. E mesmo se pensássemos que os objetivos da Lei de Cotas se restringem a alterar as porcentagens da presença de negros e não-negros na universidade - seguindo os dados da população no Brasil e suas regiões a partir dos dados do censo - até nesse aspecto é possível dizer que ainda estamos longe de alcançar os números reais, então isso impõe a necessidade da prorrogação.
Mesmo já partindo do pressuposto de que a prorrogação é uma necessidade, teria sido importante que o Estado brasileiro cumprisse a sua obrigação, sobretudo a partir da previsão que a própria lei aponta, de que deveria ter produzido pelo MEC, ao longo desses anos, um processo de avaliação da Lei de Cotas e de organização dos dados que ofertasse uma avaliação dos resultados, para que inclusive apontasse - e certamente apontaria - para a necessidade da manutenção, mas também apontasse para ajustes na aplicação da lei, para possíveis ampliações da Lei de Cotas. E isso não foi feito.
Então, o debate que hoje tem girado em torno dos dez anos da lei de cotas aponta claramente que os próximos dez anos precisam ser desenvolvidos a partir de uma observação científica cuidadosa do Estado, do MEC, das universidades e sobretudo da sociedade civil, acerca dos resultados obtidos. Isso sim vai possibilitar que a gente tenha uma apuração dos resultados e, consequentemente, nos permita avaliar o futuro da Lei de Cotas.
Há um projeto de lei que tramita hoje no Congresso que aponta para a defesa inconteste da renovação da Lei de Cotas por, pelo menos, mais 20 anos. E durante esses 20 anos nós teríamos quatro ciclos de avaliação dos resultados, feitos a partir de um sistema razoavelmente bem descrito na proposta, segundo a qual se fariam essas análises, municiando o próprio Estado, o próprio parlamento, para que 20 anos depois se pudesse avaliar os resultados e verificar a necessidade do encerramento da lei ou da manutenção pelo tempo a mais que seja preciso, a partir dos próprios dados. Então, é evidente a necessidade de manutenção da lei. Evidente também a necessidade de construir ajustes na Lei de Cotas para algumas limitações que são facilmente percebidas como, por exemplo, ausência de uma clareza sobre o papel da permanência; ausência de instrumentos de controle social; a própria definição de que o público da Lei de Cotas são as populações negras - e quando a gente fala de pardos e pretos falamos pessoas negras - evitando essa confusão de uma pessoa que se autodeclara parda sendo branca, crendo que teria direito à cota
Então os ajustes já deveriam ser feitos agora, e esse sistema de avaliação precisaria ser feito. É óbvio que a sociedade, sobretudo as universidades que aplicam e gerem a Lei de Cotas, deve estar atenta a esse debate para qualificação da lei e inclusive se mobilizando para evitar retrocessos, porque há interesse por parte de vários nisso.
Importa a contribuição das universidades para a qualificação da lei, tanto do ponto de vista de sua força de lei federal, quanto do ponto de vista da execução em cada universidade, já que elas gozam de razoável autonomia e podem ir além daquilo que apresenta a Lei de Cotas, promover ajustes locais às falhas e aos elementos descritos na própria lei. Essa seria a principal tarefa desse momento em que a gente está avaliando os dez anos do texto, que completa neste dia 29.
ACS - Passando a falar sobre a UFSB, como o sr. avalia o percurso institucional de aplicação e aperfeiçoamento dos processos de seleção no que tange às ações afirmativas, tanto as da Lei 12.711/2012 quanto as criadas pela universidade?
Pró-Reitor Sandro Ferreira - A UFSB tem uma grande vantagem histórica de ter surgido imbuída de um momento histórico brasileiro, no qual a sociedade passava por avanços importantes no campo da educação. Então, sendo ela uma nova universidade, resultado do processo de expansão, de interiorização e de reforma, que decorre do estímulo promovido pelo REUNI, ela acaba já nascendo com um olhar para esses instrumentos enquanto instrumentos prioritários na sua trajetória. A UFSB nasce com foco no papel do Enem enquanto instrumento de avaliação nacional, ela já nasce aderindo ao Sisu enquanto instrumento de acesso ampliado à possibilidade de ingressar na universidade e ela nasce sobretudo com a clara opção de aderir à Lei de Cotas. E aí é importante que se diga que, quando a Lei de Cotas foi criada e aprovada em 2012, ela previa um processo de execução que estabelecia que entre 2012 e 2016 as universidades deveriam chegar ao mínimo exigido pela lei, de 50% [de reserva de vagas para cotas] numa transição que iria de no mínimo 25% de cotas aplicadas já em 2012 até chegar aos 50% estabelecidos em lei em 2016. Muitas universidades inclusive fizeram uso desse interstício para aplicar integralmente a Lei de Cotas.
No caso da UFSB, em 2013, quando ela foi fundada, e as primeiras discussões internas são desenvolvidas para organizar o seu primeiro processo seletivo, ela já decide, lá em 2013, pensando no processo seletivo para 2014, que a adesão à Lei de Cotas seria plena; então não haveria o uso desse processo de etapas a cumprir, já se aplicou o estabelecido na Lei de Cotas, ainda que a obrigação dessa aplicação estava prevista para 2016. E mais do que isso: ao decidir daquela forma, ela também apontou naquele momento para a necessidade de ampliar para além de 50%, porque a Lei de Cotas é muito clara ao dizer que é no mínimo 50%. A UFSB avaliou que nós podemos e devemos, sobretudo pensando em nossa região e nos dados da nossa região, propor uma porcentagem maior de 50%, então vamos fazê-lo.
E nisso, nasce o primeiro processo seletivo da UFSB, com uma reserva de 55% das vagas para egressos de escola pública e as subdivisões internas previstas na própria Lei de Cotas nos cursos de bacharelado interdisciplinar, e de 85% de reserva para escola pública nos cursos de licenciatura interdisciplinar nos colégios universitários. Então ela já vai além do estabelecido na Lei de Cotas já em 2014, no seu primeiro processo seletivo, já é uma opção destacada da UFSB pelas ações afirmativas.
Também vale destacar o papel da política de Colégios Universitários, que também já nasce na UFSB com a sua implantação já em 2014, já que os Colégios Universitários são também entendidos como ações afirmativas, dado que eles se propõem a aproximar a universidade de comunidades mais isoladas da educação superior, comunidades marcadas por populações negras, indígenas e periféricas, e de egressos da escola pública. O próprio Colégio Universitário é entendido enquanto política de ação afirmativa. Então, a UFSB tem uma clara opção, desde o seu início, pelas ações afirmativas e pela ampla adesão à Lei de Cotas. Ao longo dos anos esse processo vai sendo qualificado, vai sendo ampliado, até que em 2017 a UFSB revisa seu sistema de cotas e estabelece em resolução e estabelece que a porcentagem dessa reserva passaria de 55% para 75%. Em 2018 a resolução é reformada, e aquela previsão original de fazer essa aplicação, essa ampliação da porcentagem dos cursos de Segundo Ciclo é estendida para os cursos de Primeiro Ciclo.
Houve também, naquele momento, uma espécie de organização das políticas afirmativas próprias da universidade, possibilidade prevista na própria Lei de Cotas, voltadas para segmentos específicos, que vão ser adotadas na UFSB a partir do instrumento das vagas supranumerárias. Então a UFSB fez uma ampliação muito clara e buscou adotar outras políticas ainda mais específicas para segmentos que iam além das pessoas negras (pretas e pardas), das pessoas indígenas e das pessoas com deficiência (nesse caso das pessoas com deficiência a partir de 2016, quando a Lei de Cotas é reformada para incluir esse segmento). Houve naquele momento uma busca da ampliação da política de ações afirmativas da UFSB, no primeiro momento para indígenas aldeados, depois para quilombolas e na sequência para pessoas trans, mais adiante para populações ciganas e mais recentemente (em 2021) para as pessoas egressas do sistema prisional, pessoas em privação de liberdade e refugiados, que é a política afirmativa da UFSB mais recente.
Redes Sociais