Estudo aponta para impacto negativo na pesca no Rio Madeira após instalação de hidrelétricas
Um artigo publicado em agosto na revista científica Fisheries Management and Ecology expôs resultados da análise de um banco de dados de 16 anos sobre o histórico da pesca na região sul do Amazonas, no município de Humaitá. O estudo The decline of fisheries on the Madeira River, Brazil: The high cost of the hydroelectric dams in the Amazon Basin, que compara os períodos antes e depois da instalação de usinas hidrelétricas no rio Madeira, conclui que houve prejuízos à atividade pesqueira das comunidades ribeirinhas.
A pesquisa foi coordenada pelos professores Fabrício Berton Zanchi, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e Rogério Fonseca, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e proporciona uma linha tênue no entendimento dos padrões da pesca em uma bacia fortemente impactada pela instalação de duas grandes usinas hidroelétricas. O trabalho cientifico compilado e desenvolvido pelo coorientado e doutorando Rangel E. Santos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em conjunto com os colaboradores Nadson Ressyé (UFSB) e Ricardo M. Pinto-Coelho, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), traz informações de 17 áreas de pesca na região de Humaitá, estado do Amazonas, entre 2002 e 2017. Os professores Fabrício Zanchi e Nadson Ressyé integram o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Ciências e Tecnologias Ambientais (PPGCTA), curso de mestrado sediado em Porto Seguro e conduzido em parceria pela UFSB com o Instituto Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), e também atuam no Centro de Formação em Ciências Ambientais (CFCAm/UFSB).
Conforme a análise divulgada, há um declínio de 39% da produção média anual de pescado na região após a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau. Além dos impactos diretos sobre a pesca, os cientistas identificaram mudanças no ciclo hidrológico do rio Madeira. De acordo com os autores, a intensidade da pesca, bem como a quantidade e qualidade do pescado nessa região, é determinada principalmente pelo ciclo hidrológico, que regula a concentração dos cardumes e os períodos de migração.
Neste sentido, os impactos gerados pelas hidrelétricas no ciclo hidrológico do rio Madeira estão tendo efeitos direto sobre a pesca na região. O estudo afirma que essa queda na produção pesqueira produzirá diversos conflitos socioambientais na bacia do rio Madeira. Os prejuízos causados para a comunidade de pescadores locais foram estimados em mais de R$ 1 milhão por ano. Esses resultados destacam o alto custo do desenvolvimento do setor hidrelétrico tanto para a ictiofauna local, quanto para as comunidades de pescadores da região amazônica.
O principal problema é que as barragens estão alterando os ciclos de variações do nível do rio Madeira e bloqueando as rotas migratórias de peixes, afetando a reprodução e a movimentação dos cardumes pelo rio, o que afeta a economia pesqueira. Estudos anteriores mostram que as usinas hidrelétricas mudam o habitat dos peixes ao se constituírem como obstáculos. Mesmo a instalação de “escadas” nas represas ajuda pouco se houver baixo volume de água.
Nessas condições, conta o cientista, as rotas artificiais atuais não são atrativas para os peixes: “Acontece que é muito difícil reproduzir o ambiente natural nas escadas de peixes. Depois que há a construção de hidrelétricas, muitos peixes não conseguem se adaptar à hidrodinâmica das escadas e/ou ao novo curso do rio, e por isso não conseguem transpor as barreiras, ou seja, a barragem passa a ser seletiva para as espécies. Outro problema é que parte dos ovos, larvas e juvenis que são provenientes de desova nas montantes [rio acima] acaba sendo barrada. Os ovos nesse ambiente afundam e acabam morrendo. Além do mais, há grandes indícios de que peixes estão seguindo para a casa de força, onde se chocarão com as turbinas, podendo sofrer lesões ou até mesmo morrerem”.
O problema é reconhecido pela comunidade científica e o professor Zanchi diz que há pesquisas relacionadas à estrutura das hidrelétricas, ao tipo de turbinas e a outros aspectos, com o objetivo de reduzir os impactos sobre a ictiofauna.
Estudo longitudinal
O professor Fabrício Zanchi conta que ele e o professor Rogério deram início à pesquisa. Ambos trabalharam juntos no campus da UFAM em Humaitá e coletaram todos os dados de 2002 a 2010, que rendeu um artigo com as análises preliminares. O artigo atual traz uma análise comparativa dos períodos pré e pós instalação das usinas, que entraram em funcionamento em 2011. Para isso, Rangel foi a Humaitá e coletou os dados de 2010 a 2016. Os demais coautores contribuíram nas etapas da escrita e da análise estatística do grande volume de dados de pesca e medições hidrológicas.
Os dados usados na análise são registrados diariamente em cadernos de anotações e arquivados na colônia de pescadores Z-31 no município de Humaitá. O professor Zanchi conta que os dados foram todos transcritos para planilhas de Excel por alunos de IC e uma aluna que realizava seu TCC [trabalho de conclusão de curso] na época. “Como a cidade é pequena, ficou mais fácil o acesso às informações da colônia, o que nos trouxe uma certa confiança nos dados registrados porque sabíamos quem eram os gestores e foi explicado qual seria a importância do estudo e daqueles dados para a região”, explica. Um outro motivo para a cooperação é o fato de que as comunidades da região do Baixo Madeira não receberam nenhuma forma de compensação ou mesmo royalties devido à instalação das usinas no curso do rio.
O contexto geográfico inviabiliza soluções como, por exemplo, a piscicultura. O professor Zanchi destaca os fatores: “Estamos falando de uma bacia hidrográfica cujo curso principal (rio Madeira) tem trechos com 2 km de largura. É um dos maiores rios do mundo e o maior em transporte de cargas e com grande produtividade pesqueira”. É também um local com bacias de drenagem conhecidas como aluvionar, que têm a características de serem todas alagadas nos períodos de cheia pela baixa altitude. Esse contexto gera um problema para os piscicultores, que acabam tendo os tanques rompidos ou tomados pelos rios locais e perdendo o investimento. O alagamento também torna difícil o transporte de rações e suprimentos, encarecendo esse tipo de produção naquela região. “Por estes e outras problemas, a piscicultura está longe da realidade das comunidades de pescadores na Amazônia. Eles aprenderam a pescar (devido a abundância de pescado) e não a produzir”, argumenta.
Além de tudo, a maior parte das espécies comercializadas no Brasil são exóticas, com períodos longos de reprodução e crescimento, o que é outro obstáculo. O professor diz que as espécies de peixes do Rio Madeira tem características biológicas que não se adaptam à piscicultura, como a migração reprodutiva dos grandes bagres. “A reprodução de peixes é muito sensível e depende de vários estímulos ambientais para iniciar o processo de maturação gonadal. Como o rio está totalmente alterado em relação ao ciclo hidrológico, fatores físico-químicos, uma produção pesqueira lucrativa será mais difícil”, conclui o pesquisador.
A situação das comunidades não é difícil somente pelo prejuízo direto da baixa quantidade de pescado, base da alimentação local e do comércio. A redução de taxas e impostos coletados para a colônia de pescadores, a diminuição do pescado para a cidade que tem boa parte de seu comércio voltado a este fim e distribuído nos mercados locais e também em outras cidades do entorno, como Porto Velho, capital de Rondônia, abre portas para alternativas ilegais. “Devido à falta de pescado e à baixa adaptação pelas comunidades pesqueiras em fase de degradação do ecossistema, pode-se mudar o cenário local e aumentar as práticas ilegais como uma maneira mais fácil de obter renda, como o tráfico, a caça ilegal, a extração de madeira e a biopirataria”, diz Zanchi, apontando para essas alternativas como reflexo da mudança no cotidiano das comunidades e da baixa qualidade de vida à qual a população é forçada a se submeter para sobreviver no local.
Novos estudos e possibilidades
Segundo o professor Fabrício Zanchi, o estudo não para por aqui. O mesmo relata que há trabalho em finalização sobre a percepção (etnobiologia) das comunidades locais em relação às usinas e ao pescado local.
Há outro trabalho, já com resultados finalizados e em fase de redação, sobre padrões migratórios relacionados somente com o clima e sua mudança como El Niño e La Niña e quais espécies foram afetadas em relação a instalação das usinas, com base no mesmo banco de dados. O professor relata que, entendendo estes resultados, há então a possibilidade de montar os padrões de migração para cada família ou espécie para a região. “Isto poderá nortear a implementação de uma política mais densa e consolidada em relação aos rios e aos manuseios das bacias frente à instalação de novas usinas”, afirma Zanchi, conectando esses resultados à uma das recomendações do final do artigo, a consideração do gerenciamento pesqueiro como um dos principais impactos nos padrões da ictiofauna para a região da Bacia do Rio Madeira. Os dados vão proporcionar um melhor gerenciamento da ictiofauna local e pode até mesmo servir para outras bacias na região que tenham características similares à do Madeira, com os planos para novas barragens podendo ter "uma redução ou mesmo um planejamento melhor referente à região onde se pretende instalar“.
Os autores oferecem quatro recomendações para intervenção no cenário estudado ao final do artigo. A primeira é a manutenção do monitoramento em trechos acima e abaixo das usinas para que se possa construir um banco de dados úteis para entender as dinâmicas dos peixes locais. Essa demanda é básica para outras medidas que se pretenda adotar e envolve coletar e analisar muitos dados sobre volumes de pescado de períodos antes e depois da instalação das barragens.
Outra ideia é a proposição de um programa de repovoamento de espécies nativas de peixes. O financiamento seria a cargo das usinas, como forma de repor as populações afetadas pelos efeitos das barragens. As usinas Jirau e Santo Antônio também devem propor pagamentos por serviços às comunidades afetadas pelas barragens. Conforme o professor Fabrício, trata-se de um pagamento de caráter compensatório para manutenção da diversidade de ocupação regional que foi perdida e para a manutenção das cidades afetadas direta e indiretamente.
A última recomendação presente no artigo é a inclusão do gerenciamento pesqueiro como “uma das melhores alternativas para a tomada de decisão e proposição de licenciamento ambiental de uma bacia de grande importância, bem como a redução de impactos nas construções de novas usinas”, defende Zanchi.
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