Formação de psicólogos no Brasil é tema de grupo de pesquisa
A preparação acadêmica de psicólogos no Brasil deve ir além do nível profissionalizante e também incluir outras dimensões formativas? Como organizar os currículos para atualizar o futuro profissional e pesquisador em relação aos desafios da área hoje? O Observatório da Formação em Psicologia (ObPsi), grupo de pesquisa em fase inicial coordenado pelos professores Caio Rudá de Oliveira e Gabriela Andrade da Silva, dedica-se a explorar essas questões para compreender e propor inovações nesse tema. Os estudos empíricos sobre o assunto pelo grupo estão ligados ao interesse de pesquisa do professor Caio durante seu mestrado, defendido em 2015. A discussão dos resultados da pesquisa está apresentada no artigo Formação em Psicologia: Uma análise curricular de cursos de graduação no Brasil, recém-publicado na revista E-Curriculum (PUC-SP) e assinado pelo professor Caio em co-autoria com os professores e orientadores da dissertação Denise Coutinho (UFBA) e Naomar de Almeida Filho, ex-reitor da UFSB.
O professor Caio destaca que a contribuição do trabalho é a proposição teórica de um modelo formativo para psicólogos, desenvolvido a partir da adaptação de um modelo de formação médica inicialmente desenvolvido pelo pesquisador argentino Juan César García e atualizado pela tese de doutorado do professor Marcelo Nunes Dourado Rocha, do IHAC Milton Santos/UFBA. "Este modelo permite avançar em relação aos demais estudos deste tema, cujas características têm sido a ausência de marco teórico, abrangência limitada a um ou poucos casos, e o caráter contingencial e limitado dos trabalhos, ou seja, vinculado a eventos pontuais, como mudanças curriculares em determinados cursos ou problemas identificados em determinados aspectos do processo formativo, como estágios, questões éticas, formação para pesquisa, discussão sobre avaliação psicológica etc. Além disso, estes estudos, em sua maioria, apresentam um caráter especulativo e pouco empírico dos trabalhos, sendo muitas discussões orientadas pela experiência própria de indivíduos ou grupos", destaca o professor.
A pesquisa foi realizada mediante um estudo de casos múltiplos, analisando cinco cursos de Psicologia, os mais bem avaliados de cada uma das regiões do Brasil. A crítica ao modelo hiperprofissionalizante do ensino superior, que reduz o espaço para "uma formação ética, cidadã e socialmente compromissada", afirma o professor Caio, é um dos pontos do artigo que leva à defesa de uma remodelação da arquitetura curricular dos cursos de Psicologia: "Os principais resultados apontam para uma estrutura de formação anacrônica, não condizente com as especificidades ontológicas da Psicologia e apartada das expectativas acerca do papel da educação superior na formação cidadã crítica e profissional. Acredita-se, portanto, que a formação em Psicologia deve ser revista em todas as dimensões, desde seus marcos normativos aos tipos de componentes curriculares", aponta Caio.
O regime de ciclos, como o adotado na UFSB, é avaliado como uma forma de consolidar um sistema de formação humanística, cultural, artística e científica além da formação técnica e treinamento especializado. A proposta envolve assentar a formação inicial em uma base introdutória, que seria complementada em outra etapa voltada para conteúdos estruturantes do campo psicológico, capacitando o estudante para utilizar instrumentos e técnicas psicológicos indispensáveis à atuação profissional. "Por fim, uma profissionalização mais efetiva dar-se-ia num terceiro ciclo de formação especializada, conforme áreas de especialidade e atuação ou orientações teórico-metodológicas, em programas de residência e/ou mestrado ou doutorado profissional", detalha o professor.
Um dos trabalhos do grupo abordou o perfil dos estudantes de Psicolgia e foi
apresentado no II ULAPSI pela professora Gabriela Andrade da Silva
O olhar desde o Observatório da Formação em Psicologia
O professor Caio explica que a pesquisa que resultou no artigo foi determinante para o estabelecimento da linha de estudos desenvolvida pela equipe do Observatório, coordenada pela professora Gabriela Andrade da Silva e por ele e composta ainda pelos estudantes de graduação Cícero Márcio Carvalho Malta, Edilson de Jesus Santos (Bolsa de Apoio à Permanência), Fredson Oliveira, João Paulo Leal Borges, João Pedro Alves, Tárcila Fernandes e Victória Dourado Martins (bolsa PIPCI a partir de agosto/2019) e pelos discentes da Especialização em Saúde Coletiva Amora Ferreira Menezes Rios (cujo TCC foi balizado por uma das linhas de pesquisa do grupo) e Larayne Gallo Farias Oliveira (colaboradora). O objetivo é investigar a formação do psicólogo, incluindo assuntos como currículo, processos pedagógicos e qualidade da formação. "Buscamos conduzir essas pesquisas com diversidade de metodologias, na perspectiva de termos uma visão ampliada desse complexo objeto de estudo", define. O trabalho iniciou em setembro de 2018 com os docentes, e o início do grupo ocorreu em fevereiro deste ano.
O grupo realiza reuniões metapresenciais, o que permite que estudantes de qualquer curso dos três campi possam participar do Observatório. A inclusão de discentes em diferentes percursos acadêmicos à equipe ocorre em uma relação disposta à valorização das contribuições que cada um pode aportar: "Além de propormos trabalhos de pesquisa com a participação de nossos estudantes, nós procuramos estimulá-los a criar perguntas de pesquisa, com base na curiosidade deles, e damos suporte à elaboração de um método que possa responder a essas perguntas. Dessa forma, a participação dos discentes é bastante ativa, com alguns trabalhos criados por iniciativa deles próprios", afirma o professor Caio. Os trabalhos desenvolvidos no Observatório se inserem em uma das linhas de pesquisa vigentes: História e Teoria da Formação em Psicologia, Avaliação da Qualidade em Cursos de Psicologia, Estudos sobre a Estrutura de Ensino-Aprendizagem, todas com resultados sendo divulgados em eventos e em periódicos científicos. Há plano de iniciar futuramente uma linha intitulada Estudos sobre as Relações de Ensino-Aprendizagem, na qual outros métodos e técnicas vão integrar o ferramental dos pesquisadores.
Os líderes do ObPsi comentam o assunto em entrevista:
ObPsi - De um modo geral, uma visão tecnicista limita o trabalho do psicólogo em qualquer área de atuação. Se não se compreende o sujeito em sua relação com o social, há limitações na intervenção, não importa o espaço. No entanto, me parece que o prejuízo maior associado a esse tipo de visão está na atuação em políticas públicas e entre populações vulnerabilizadas. A desconsideração da subjetividade de grupos historicamente oprimidos e de indivíduos marginalizados pelo Estado e pela sociedade conduz a um erro na hora de realizar uma determinada intervenção psicológica. Para dar um exemplo mais próximo de nossa experiência, no âmbito da saúde e do SUS, tomemos aí um sujeito que passa por algum tipo de adoecimento ou até mesmo hospitalização. O manejo da questão envolve em primeiro lugar a necessária consideração da anulação da identidade que o discurso biomédico produz, transformando sujeitos em doentes, casos, ou mesmo códigos de leito ou prontuário - aniquilação amplificada no contexto de saúde pública pelas questões de gênero, raça e classe. Da atenção básica à hospitalar, é comum que os profissionais de saúde atuem com tamanha resolutividade que acabem comprometendo o vínculo humano. Se o primeiro contato é abalado, também é todo o resto: o diagnóstico pode ser falho, a adesão fica comprometida e a intervenção míngua. É preciso considerar as questões culturais, sociais e até espirituais envolvidas no adoecimento, que por sinal não é uma mera questão de incidência de sintomas ou de falta de saúde. É uma experiência qualitativamente distinta do quadro de "normalidade". E é justamente aí que entra a subjetividade, é ela que singulariza a experiência do adoecimento. Conhecendo, na medida do possível, a subjetividade é possível traçar um plano terapêutico conforme às experiências do sujeito, sempre à luz de sua história. Porém, a literatura infelizmente tem apontado que é muito comum a consideração de um modo de intervenção que incide sobre a doença apenas. Esta é a visão tecnicista. Além de pouco contribuir para uma superação dos problemas de saúde, este tipo de conduta compromete ainda mais a experiência de adoecimento, visto que pode desencadear nos indivíduos um sentimento de falha por não ter se adaptado ao esquema terapêutico proposto pelo profissional. São consequências perversas.
ObPsi - Entendendo a necessidade de renovação como uma aproximação da questão social, a princípio diríamos que a demanda de mercado conflita sobremaneira com esta renovação, afinal os interesses dos grupos dominantes e a exploração desumana das camadas mais pobres da população são fatores que geram o adoecimento que muitas vezes será alvo de intervenção do psicólogo. A ideia da mão invisível do mercado regulando a oferta de bens e serviços é uma grande falácia liberal que tem seu desdobramento na construção da subjetividade, e consequentemente no trabalho do psicólogo. O acirramento da noção de liberdade individual, que o sistema capitalista ajudou a construir, nos coloca hoje numa condição de distanciamento do coletivo, do social. Hoje nos vemos mais como sujeitos individuais e não sujeitos de uma coletividade, de modo que não nos corresponsabilizamos mais pelos nossos pares. Assim, normalmente entende-se que o adoecimento psíquico é uma questão individual, gerada pela incapacidade do sujeito de ser resiliente, e que deve ser portanto tratada no âmbito da terapia, ali no cara-a-cara com o psicólogo. Esta é uma ideia inevitável do nosso modo de produção capitalista. Hoje o psicólogo, antes de mais nada, precisa ter dimensão histórica da sua prática e reconhecer que se encontra hoje diante de um dilema: como caracterizar sua atuação considerando a necessidade de renovação e o compromisso com a questão social e mantendo-se dentro dos limites profissionais, que foram historicamente construídos em alinhamento com o interesse do capital? Eis o primeiro passo. A tomada de consciência. Em seguida, é necessária uma saída inventiva, que estamos tentando desenhar há algumas décadas, desde que foram tecidas as primeiras críticas a este alinhamento da profissão. Cada espaço de atuação demanda um conjunto de práticas específico, condizente com suas particularidades. Os desafios de um psicólogo escolar serão um tanto distintos dos desafios do psicólogo atendendo no SUS. Nesse caso, arriscaria dizer que não existe a priori, a não ser a absoluta necessidade de observância do código de ética, o compromisso com a atualização profissional constante e o sólido conhecimento em pesquisa e fundamentos de avaliação psicológica. No tocante às peculiaridades de cada contexto, o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) tem exercido um papel importante com o lançamento de cartilhas que compilam diretrizes para atuação em situações específicas, como questões relativas à terra, álcool e outras drogas, atenção a mulheres em situação de violência etc., construídas a partir da experiência de psicólogos em todo o país, oferecendo aos profissionais uma base para atuação que deve ser construída conforme seu contexto de trabalho. Daí a necessidade de saber reconhecer os desafios sociais e construir uma prática ajustada a esses contextos e desafios.
Linhas de trabalho e participação
1) História e Teoria de Formação em Psicologia: "Busca estudar conceitualmente o que é a formação e realizar comparações entre diferentes modelos de formação em Psicologia. Dentro dessa linha, procuramos aprimorar o modelo apresentado no artigo "FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA: UMA ANÁLISE CURRICULAR DE CURSOS DE GRADUAÇÃO NO BRASIL (https://revistas.pucsp.br/curriculum/article/view/38570)". Pretendemos encontrar formas de subsidiar esse modelo com dados empíricos, por meio de outras linhas de pesquisa que estamos desenvolvendo, bem como por meio de leituras e discussões teóricas no âmbito da educação e sociologia. Assim, está planejada para 2020 a publicação de um novo artigo, com o objetivo de apresentar o modelo e suas bases empíricas, qualitativas e quantitativas".
2) Avaliação de qualidade de cursos de Psicologia: "Estuda a qualidade de cursos de psicologia, entendida de forma ampla, incluindo não apenas o resultado da formação em termos de habilidades, competências e conteúdos assimilados, mas também da perspectiva de democratização do acesso e integração ensino-serviço-comunidade. As análises são realizadas a partir de bancos de dados públicos, como os disponibilizados pelo sistema eletrônico e-MEC e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Esta linha de pesquisa também estuda os rankings acadêmicos e suas implicações do ponto de vista da educação e da sociologia. Alguns produtos dessa linha de pesquisa são:
3) Estudos sobre a estrutura do processo de ensino-aprendizagem: "Estuda os elementos de arquitetura acadêmica, currículo, componentes curriculares e conteúdos. Para isso, estamos construindo um extenso banco de dados com os Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs) de Psicologia do Brasil. Alguns trabalhos dessa linha de pesquisa são:
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