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[Comentário] - Abril Indígena: Aos companheiros indígenas, esses povos vaga-lumes

  • Publicado: Terça, 23 de Abril de 2019, 13h40
  • Última atualização em Terça, 23 de Abril de 2019, 13h40
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Para começo de prosa, convido a professora Graça Graúna, cujos saberes, tenho certeza, remontam a outras eras: “Entre os indígenas de várias partes do mundo, a palavra é um elemento sagrado. Na visão Guarani, por exemplo, a palavra tem alma. Palavra e identidade se confundem; palavra que passa de pai para filho, dos avós para os netos; palavra carregada de água, palavra de água, palavra vinda da terra, palavra aquecida pelo fogo, palavra tão necessária quanto o ar que se respira; palavra que atravessa o tempo. (Graúna, 2013, p. 173).

Essa palavra sagrada e “tão necessária quanto o ar” foi por séculos silenciada e apagada em nome de um etnocida e unívoco projeto de nação. Porém os povos indígenas de hoje reivindicam sua palavra – oral e escrita, o direito a ela, nas palavras de Graúna (2013), como “manifestação transformadora”. Palavra para contra-narrar e denunciar a colonização de ontem, assim como a barbárie material e simbólica praticada hoje contra os povos que corajosamente resistem.

O escritor Daniel Munduruku (2010) falando em nome de seus parentes, afirma: “Escrevemos para contar o que sabemos e não para esvaziar a oralidade. Escrevemos aquilo que acreditamos, nunca com intenção de desprezar o que os outros crêem.  Escrevemos nossa memória para que os outros saibam de onde viemos. Escrevemos nosso jeito simples de viver, para que todos saibam que a felicidade é possível, que a liberdade é possível, que a simplicidade é a nossa riqueza” (Munduruku, 2010, p. 71).

Os motivos para escrever elencados por Munduruku (2010) evidenciam uma necessidade criada pela existência de um outro a quem é preciso contestar, a quem é necessário se dar a conhecer para estabelecer outras e diferentes relações. Escrever para fazer circular o conhecimento indígena como alternativa ao saber como hegemonia, como estrada de mão única. Intuo então que escrever não é uma questão de se tornar menos indígena, como pensam alguns, é apropriar-se de uma tecnologia a mais na luta pelo território, pela diferença e igualdade.

Em sua fala de despedida da secretaria do Fórum de Educação Indígena da Bahia – FORUMEIBA (VI edição, sediado pela comunidade indígena Kiriri em Muquém de São Francisco, Ibotirama / BA nos dias 11,12 e 13/12/2013) – após quatro anos de atuação, Agnaldo Francisco dos Santos, Pataxó Hã Hã Hãe da aldeia Caramuru em Pau Brasil na Bahia discursa em defesa de uma educação diferenciada que possa fornecer instrumentos do “mundo dos brancos” aos povos indígenas, para que estes possam lutar com armas iguais, “atacar o inimigo em seu campo”. Em toda sua fala, o líder Pataxó deixa ver que entende o domínio da língua portuguesa, em especial em sua modalidade escrita, como ferramenta imprescindível para a conquista de lugares potencialmente políticos, de onde as vozes indígenas sejam efetivamente ouvidas.

Michel Foucault (2010, p.59), em uma de suas aulas, registradas no livro “Em defesa da Sociedade” desmente o pressuposto da soberania de “que a história dos fortes” traria “consigo a história dos fracos”. Acrescenta a seguir que “a história de uns não é a história de outros”. Enfim, a narrativa dos que foram considerados pela história vencidos, não pode ser a mesma daqueles coroados como vencedores: é preciso então que haja um novo discurso, uma contra-história, que para o filósofo, “mostrará [as histórias institucionalizadas] como abuso, como atos de violência, confiscos, pilhagens, tributos de guerra coletados violentamente de populações submissas”.

É preciso falar do “lado da sombra, a partir da sombra” (Foucault, 2010) dos enredos daqueles que foram silenciados e que agora tomam a palavra para contar, para “desenterrar alguma coisa que foi escondida, e que foi escondida não somente porque, ciosa, deliberada, maldosamente, deturpada e disfarçada” (Foucault, 2010, p. 61).  Munduruku (2013, p. 1) denuncia que “A história que nos foi contada traz o ponto de vista do narrador”, sugerindo que há a necessidade de outras narrações, sob outros pontos de vista e desde outros lugares de fala. Para ele “é preciso dar voz e vez às gentes que estavam aqui presentes antes do brasil ser Brasil.”

O filósofo Didi-Huberman (2011, p.155) considera que é nas margens (o que torna o mundo como o conhecemos infinitamente mais extenso!) onde “caminham inúmeros povos sobre os quais sabemos muito pouco, logo, para os quais uma contrainformação parece sempre mais necessária. Povos-vaga-lumes, quando se retiram na noite, buscam como podem sua liberdade de movimento, fogem dos projetores do ‘reino’, fazem o impossível para afirmar seus desejos, emitir seus próprios lampejos e dirigi-los a outros.”

Arrisco dizer que a palavra, tanto na modalidade oral, quanto na escrita, é lugar de afirmação dos projetos dos povos indígenas brasileiros. E sendo-o, convida à produção de outras estruturas, que por serem múltiplas, por confrontarem uma palavra oficial que desde muito definiu os lugares políticos de uns e outros, forçam a aproximação não necessariamente pacífica de diversas vozes sociais, insurge contra o centro para onde sempre se direcionaram as luzes dos holofotes. A palavra indígena, esta que começa a se tornar audível, cria possibilidades para a quebra das segmentarizações e organizações verticalizadas, para diálogos e embates tão necessários a esses dias confusos, em que muitos brasileiros apostaram/apostam em um projeto de nação marcado pelo preconceito e pelo ódio a tudo o que escapa a uma pretensa homogeneidade. A palavra indígena é então, luz intermitente, é vaga-lume iluminando aqui e ali onde aparentemente existe apenas a escuridão ou, paradoxalmente, onde o excesso de luminosidade há muito impede a visão.

Professora Vera LuciaVera Lúcia da Silva é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES/UFSB), professora da rede pública estadual em Teixeira de Freitas há mais de 20 anos, pesquisadora e militante das pautas de educação escolar indígena. Vera é mestra em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUCRio, graduada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Já atuou na coordenação de projetos do Governo do Estado da Bahia e tem experiência com escolas indígenas do município de Prado/BA. A professora e doutoranda Vera apresenta, no texto abaixo, uma contribuição ao Abril Indígena sobre escritas, saberes e resistências.

Referências

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

MUNDURUKU, Daniel. Mundurukando. São Paulo: Ed. Do autor, 2010.

MUNDURUKU, Daniel. Equívocos nossos de cada dia. Disponível em: hhttp://danielmunduruku.blogspot.com.br/p/crônicas-e-opinioes.html. Acesso em 22 de abril de 2019.

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