Estudo aborda relação entre percepção de risco e adesão a quarentena voluntária
Com mais de um milhão de mortos no mundo inteiro, a pandemia de covid-19 evidenciou diversos problemas. Um deles parece ser a dificuldade de fazer com que as pessoas percebam igualmente os perigos de desconsiderar as recomendações de autoridades de saúde na prevenção do contágio. Os efeitos dessa incapacidade se refletem em praticamente todos os aspectos da sociedade atual, da educação à economia. É justamente a diferença na percepção de risco o principal parâmetro que altera os resultados no modelo epidemiológico desenvolvido no artigo An epidemiological model with voluntary quarantine strategies governed by evolutionary game dynamics, publicado na revista científica Chaos, Solitons and Fractals e assinada pelos pesquisadores e professores Marco Antonio Amaral (UFSB), Marcelo M. Martins (UFSJ) e Marco Alberto Javarone (University College of London).
Um dos autores, o professor Marco Antônio Amaral, que leciona e pesquisa no Campus Paulo Freire, em Teixeira de Freitas, explica que o trabalho apresenta um modelo analítico totalmente original de uma epidemia na qual a quarentena voluntária é uma das possibilidades. "Mais especificamente, desenvolvemos as equações para um sistema de propagação de infecções do tipo SIR (susceptível, infectado, removido) que inclua naturalmente estratégias individuais de quarentena baseadas na percepção de risco de cada indivíduo em relação a gravidade da doença", detalha. Para isso, os pesquisadores uniram equações usadas na modelagem computacional para estudos epidemiológicos às equações empregadas no campo da teoria de jogos evolutivos. É esse ajuste que permite usar linguagem matemática para simular a variedade de decisões estratégicas de uma população diante de uma situação de contágio veloz por uma doença. Enquanto a Epidemiologia contribui com os modelos de transmissão de doenças, a teoria dos jogos fornece modelos de tomadas de decisão baseadas em conflitos de interesse e dilemas. "No nosso caso, indivíduos podem escolher fazer quarentena (ou deixar a quarentena) baseados no estado atual da pandemia (número total de infectados), comparado com os custos percebidos de se realizar uma quarentena", complementa o docente.
Simulando cenários para entender o papel dos comportamentos
A ideia da pesquisa, que não trata dos processos de contágio do covid-19, deriva do interesse pela complexidade dos aspectos sociais da quarentena voluntária. Os modelos epidemiológicos que incluam as dimensões individual e coletiva das escolhas por aderir ou não a medidas de isolamento podem ajudar a aprimorar respostas governamentais em casos como o que o planeta enfrenta no momento. "O artigo é totalmente focado no desenvolvimento analítico do modelo de equações diferenciais ordinárias (EDO). Utilizamos diversas simplificações (população infinita e totalmente conectada) para criar um modelo inicial que seja simples e não contenha complexidades desnecessárias. O objetivo central é criar um arcabouço matemático para permitir a integração de estratégias e evoluções comportamentais dentro do modelo epidemiológico clássico (SIR)", conta o professor Marco Antônio.
Saber como esses comportamentos podem evoluir em ligação com o avanço do contágio é vital, por exemplo, para desenhar medidas políticas que consigam maior eficiência no isolamento, preservando a capacidade dos sistemas de saúde, e que ao mesmo tempo e reduzam os danos da interrupção da normalidade por muito tempo na economia, na educação e em todas as demais áreas do cotidiano.Definir nas equações as diferentes escolhas sobre fazer ou não o autoisolamento é um processo que emprega contribuições da teoria dos jogos, e essas escolhas são representadas matematicamente para influir no desenvolvimento do modelo epidemiológico simulado.
Dessa forma, à atitude de seguir ou não as orientações de quarentena, uma decisão no aspecto de controle da epidemia, corresponde uma decisão de cooperar ou de competir com outros, numa perspectiva da teoria dos jogos. Essa área de estudos reúne diferentes modelos relacionais que comparam atitudes individuais e coletivas no âmbito da cooperação (em prol da coletividade) e da competição (que prioriza o resultado individual) em proposições de jogos, cujas dinâmicas podem ser percebidas em diversas relações sociais. Assim, quem adere às recomendações de prevenção e realiza a quarentena pode ser considerado um jogador "cooperativo", um cooperador, para exemplificar o uso dos termos próprios do campo. Da mesma forma, quem descumpre as orientações preventivas em busca de uma satisfação pessoal é representado no modelo como um jogador egoísta, um "traidor".
Um ponto importante do artigo é que parte da premissa de que as escolhas de aderir ou não à quarentena são resultado de uma avaliação pessoal do custo relacionado, ou, de outra forma, uma decisão de qual risco vale a pena correr: o contágio pela exposição ou os custos diversos da quarentena voluntária. Os resultados apresentados confirmaram efeitos já percebidos em estudos epidemiológicos e expuseram o papel da percepção de risco.
"Mais especificamente, nosso modelo mostra claramente ondas secundárias de infecção, um problema atual que está sendo visto em diversos países. Através do modelo, vemos que conforme a população passa a perceber como menos grave a doença (devido a um menor número de infectados), rapidamente as pessoas passam a deixar a quarentena. Isso por sua vez faz com que a infecção volte a se espalhar, gerando novos picos recorrentes de infecção", afirma o professor Marco Antônio. É o processo pelo qual alguns países estão passando, como a França e o Reino Unido, por exemplo. E também em países nos quais a primeira onda não foi superada, gerando um nível alto e constante de novos casos e de óbitos, como em países da América Latina, especialmente o Brasil.
Os autores perceberam que o modelo por eles construído, mesmo com as simplificações, permitiu perceber qual é o principal fator envolvido no controle. "Como nos modelos do tipo SIR clássicos, o tamanho final da infecção é altamente dependente da taxa de infecção do virus. Porém, vemos que, em nosso modelo, o parâmetro central capaz de controlar a altura máxima do pico de infecções é a percepção média da população quanto a gravidade da doença", explica o professor Marco Antônio. Se a percepção do risco de ficar doente é baixa em uma coletividade, ainda que nela hajam muitos infectados, a maioria das pessoas vai considerar que o custo da quarentena é muito maior que o perigo de ficar doente. "Isso causa em geral um pico singular e enorme de infectados, o que no mundo real se traduz no colapso do sistema de saúde. Já para valores de percepção de risco progressivamente maiores, vemos que, mesmo com infectados na população, os indivíduos consideram mais proveitoso pagar o custo da quarentena ao invés de se arriscarem. Isso gera uma sucessão de picos de infecção, porém com tamanhos muito menores, o que é extremamente interessante em uma pandemia global", considera Marco Antônio.
O trabalho contribui para uma nova interface entre os modelos epidemiológicos que são usados para o planejamento contra doenças infecciosas e a dimensão comportamental da sociedade, por meio da Teoria dos Jogos, explica o professor. "A área de epidemiologia comportamental é relativamente nova, e apesar de já ter resultado em diversos modelos úteis que integram comportamentos sociais à epidemiologia, ainda não existe um modelo simples e unificado que integre a teoria dos jogos, que é o arcabouço matemático mais natural para a modelagem de comportamentos racionais. Nosso modelo permite um início de tais modelagens, abrindo futuras possibilidades para modelos com conexões espaciais e populações heterogeneamente distribuidas".
Imagem de Alexandra_Koch por Pixabay
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