Em artigo, pesquisadores usam modelo de epidemia zumbi para estudar propagação de rumores e fake news
Que a disseminação de notícias falsas e rumores alcançou um nível inédito em muitos processos políticos ao redor do mundo, isso é indiscutível. As análises para entender de quais formas essa propagação ocorre rendem pesquisas em diferentes campos da ciência. O artigo Rumor propagation meets skepticism: A parallel with zombies, publicado na revista EuroPhysics Letters (EPL) pelos professores Jeferson Arenzon (UFRGS) e Marco Antônio Amaral (UFSB, Campus Paulo Freire) mostra um estudo no qual os autores empregam um modelo de simulação para entender fluxos de rumores e informações mentirosas. O modelo epidemiológico escolhido tem crescente aplicação em pesquisas da Física Estatística e da Sociofísica e remete a um pesadelo vindo direto da cultura pop: o zumbi. O problema da propagação das notícias falsas pode ser comparado, de modo figurado, a uma doença que consome cérebros a la "Madrugada dos Mortos" (1978), o clássico filme de horror de George Romero.
Um dos variados usos de modelagens da Sociofísica está na epidemiologia, na qual uma simulação ajuda a compreender as fases de contágio de uma doença em uma população de acordo com muitos parâmetros, como a agressividade do causador da enfermidade, fatores do cenário do contágio e as medidas para o controle, por exemplo. Quanto mais consistente e articulado esse modelo, mais útil ele será para o planejamento de ações eficazes, com redução de custos e de danos - o que pode gerar valiosos conhecimentos para a gestão em muitas áreas. É comum a criação de toy models, que são as simulações que não abordam assuntos reais e que servem para testar a consistência matemática e os limites de hipóteses e de equações derivadas ordinárias, por sua vez usados para simular diversas dinâmicas populacionais. Esses toy models ajudam a atualizar modelagens mais antigas ao inserir novos parâmetros e, com isso, fazer avançar a área. Um dos mais famosos toy models é o contágio que leva ao apocalipse zumbi em filmes, jogos eletrônicos, quadrinhos e livros: apesar de ser um fenômeno ficcional, vem servindo como base para muitos estudos recentes.
A decisão de modelar um cenário de contágio zumbi no qual o vírus é a notícia falsa e o boato permite abordar o problema das notícias falsas a partir de um novo prisma - além de ser muito oportuna. No artigo, os autores explicam o modelo SEZR (Suscetível, Exposto, Zumbi e Removido). Mas os estudos que aproveitam o cânone do zumbi diferem das modelagens epidemiológicas em um ponto essencial. Como o professor Marco Antônio explica em post sobre o artigo no seu blog, "diferente dos modelos clássicos de epidemia, onde a doença é curada espontaneamente ou somente via vacinas, no modelo de zumbis a “cura” para um infectado somente ocorrerá perante o confronto com uma pessoa saudável, vulgo tiro no cérebro do zumbi". Longe de propor qualquer atitude violenta contra a tia do zap ou o tio do pavê, o modelo desenhado por Arenzon e Amaral permite verificar cenários em que o "zumbi das fake news" pode seguir espalhando sua "infecção" ou passar ao estado "removido", no qual deixa de compartilhar informação falsa, mediante o contato com o ceticismo ativo (a pessoa que confronta e desmente a informação falsa) e com o ceticismo passivo (exposto na atitude de quem não repassa fake news e boatos). Os resultados deste estudo favorecem o aperfeiçoamento de modelagens que podem aportar indicações de como lidar com o problema.
O professor Marco Antônio explica mais detalhes da pesquisa em entrevista concedida por e-mail à ACS.
ACS: Como surgiu a ideia do problema de pesquisa?
Professor Marco Antônio Amaral: A ideia inicial do problema veio do professor Jeferson Arenzon, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, durante meu pós-doutorado na instituição. Ele já trabalhava na mesma área que eu, no caso a Sóciofísica, há algum tempo e tinha muita vontade de tentar alguma pesquisa numa área nova. Nesse sentido, ele (o Jeferson) já tinha lido um pouco de um livro publicado recentemente que juntava justamente diversos artigos de modelagem matemática de zumbis (acredite ou não, existem uma boa quantidade de artigos nessa área!), o Mathematical Modelling of Zombies do autor Robert Smith. A ideia inicial era que tentássemos utilizar modelos de sociofísica e física da matéria condensada para adicionarmos novos fenômenos e peculiaridades nos modelos anteriores de epidemia zumbi já estudados. Uma vez que tínhamos um norte de pesquisa, seguimos em frente buscando novos modelos e descrições para o que seria uma abordagem mais "realista" de uma epidemia zumbi. E aqui é muito importante citar o conceito de "toy model". Muitas vezes, não somente em Física mas em todas as ciências, é comum propor um modelo que não descreve nada particularmente real, mas que possua um arcabouço matemático suficientemente robusto para eventualmente descrever novos fenômenos. Foi assim com o modelo de "universo de um elétron" proposto por Richard Feynman, ou o modelo inicial de anti-matéria proposto por Dirac, que presupunha o chamado "mar de Dirac". Claro que epidemias zumbis não existem. Porém, a matemática desenvolvida em tal pesquisa pode ser muito valiosa para a descrição de fenômenos reais - felizmente foi o nosso caso, especificamente a descrição do espalhamento de fake news.
Como foi feita a pesquisa? Quais procedimentos e conceitos da Física foram acionados nesse estudo?
Para essa pesquisa inicial, utilizamos o famoso modelo SIR da epidemiologia como uma base. Nesse modelo, utilizamos equações diferenciais ordinárias (EDO's) para modelar o espalhamento de uma doença na qual existam indivíduos susceptíveis (S), indivíduos infectados (I) e por fim indivíduos removidos (R), que são pessoas que se curaram da infecção (como uma gripe por exemplo). Esse tipo de modelo matemático é uma das bases da epidemiologia quantitativa, e ao utilizar parâmetros de doenças reais (como taxa de infecção ou incidência numa população) é fácil obter previsões acuradas de como uma epidemiologia de tal doença poderá se espalhar pela população. No entanto, o modelo SIR clássico envolve um tipo de infecção no qual as pessoas se curam espontaneamente após algum tempo. Em nosso caso, propusemos uma nova EDO para tentar modelar o que ocorreria se o portador da doença se mantivesse no estado infectado até que um indivíduo saudável o eliminasse, o que é o caso clássico de um zumbi, que continua a infectar pessoas até que seja destruído por um humano. A partir disso desenvolvemos nosso modelo SEZR (susceptível, exposto, zumbi, removido), criando um novo sistema de EDO's. Com ele, pudemos utilizar de simulações computacionais e cálculos numéricos justamente para obter quais as taxas de infecção e quais as taxas de "extermínio de zumbis" que resultariam num cenário favorável para os sobreviventes ou num cenário apocalíptico.
No que o modelo epidemiológico e o conceito de infecção zumbi podem colaborar para entendermos a propagação de rumores e notícias falsas? Que estratégias se pode desenhar, a partir dos resultados, para combater a propagação ou fortalecer o ceticismo do público?
Essa é a grande pergunta. Ok, temos um sistema de equações que ajuda a prever como se evitar um apocalipse zumbi, e agora? O grande insight foi notar que apesar de não existirem zumbis em nosso mundo, o modelo matemático que havíamos desenvolvido tinha similaridades profundas com outro fenômeno da realidade: as fake news! Não é algo novo utilizar-se da matemática de epidemiologia para descrever a propagação de rumores falsos. De fato, existe uma grande literatura que utiliza-se do modelo SIR clássico para tentar descrever como rumores "infectam" pessoas saudáveis que passam a ser propagadores durante um tempo até se tornarem "removidos" quando perdem o interesse em tais rumores. Porém, diferente de uma gripe, um rumor tem características únicas, e em específico uma fake news de internet irá ser ainda mais diferente. Ao contrário de uma gripe, o "tempo de vida" de uma fake news é gigantesco, se é que elas de fato morrem. Ou seja, uma vez que alguém "suscetível" seja infectado e passe a espalhar notícias falsas, ela na verdade não irá espontaneamente perder o interesse nisso e deixar de espalhar tais notícias. Pelo contrário, o que vemos hoje em dia é que grupos que espalham notícias falsas se auto-reforçam frequentemente, mantendo ou mesmo aumentando a taxa com que espalham notícias falsas. Esse é, matematicamente, o mesmo comportamento que temos do modelo SEZR, no qual zumbis continuam a infectar a população indefinidamente, ou melhor, até que alguém consiga mudar o estado do zumbi para removido. Da mesma forma, o espalhamento de notícias falsas está inerentemente relacionado com o nível de ceticismo de uma população. De maneira geral, um espalhador de notícias falsas não tende a parar de fazê-lo, a menos que ele debata o tema com alguém cético que consiga convencê-lo a verificar as fontes e checar se aquela notícia realmente é confiável. Nesse sentido, o modelo matemático estrito pode ser comparado a um modelo onde pessoas tendem a espalharem notícias falsas continuamente, até que haja um encontro e troca de ideias com alguém cético, que poderá mudar o comportamento do espalhador. E da mesma forma que anteriormente, a partir de tais EDO's, podemos obter parâmetros iniciais que dariam uma ideia sobre qual o nível de ceticismo mínimo em uma população que impediria uma epidemia de notícias falsas.
No artigo os autores comentam sobre o papel do "cético passivo" para a diminuição da propagação de rumores. Na sua análise, o que entra na composição de uma "vacina" eficaz?
Note que acima eu ilustrei somente o papel do cético "ativo", ou seja, aquela pessoa que confronta diretamente o espalhador de notícias falsas, tentando convencê-lo a parar. Porém essa não é a única saída: ainda existe o parâmetro chamado "cético passivo". Esse valor indica com qual frequência uma pessoa iria ouvir uma notícia falsa e simplesmente ignorá-la, deixar pra lá. Note que nesse caso, o cético passivo não está tentando convencer o espalhador de fake news a parar, ele somente ignora a notícia. E apesar disso parecer algo ineficaz, o que vimos em nosso modelo é que ele pode ser fundamental na mudança para um estado da sociedade onde o rumor desapareça. E em minha opinião, esse é um dos pontos mais interessantes do modelo, pois podemos comparar qual a "eficácia" de um cético ativo em relação a um cético passivo. Ou seja, dado um certo rumor, podemos verificar no modelo o que seria mais importante de se incentivar: que pessoas confrontem ativamente os espalhadores de rumores ou que se incentive somente a um ceticismo passivo, no qual as pessoas verifiquem as notícias antes de repassá-las. E claro, como tudo na vida, não existe uma resposta única para todos os casos. O modelo não irá dizer "faça sempre 20% das pessoas serem céticas passivas e o restante céticas ativas". O modelo irá dar a proporção entre uma fração e outra, em relação a quão "viral" é a fake news. E claro, isso é um modelo altamente inicial e teórico, no qual utilizamos diversas aproximações que não são válidas para o mundo real. Mas é a partir dessa base que podemos ir construindo modelos mais robustos e complexos aos quais adicionaremos cada vez mais detalhes. E, de fato, é isso que estamos fazendo nesse momento. Em colaboração com os professores Jeferson Arenzon e Wellington Dantas, estamos a finalizar nosso segundo artigo sobre propagação de rumores e zumbis, que dessa vez incluirá efeitos espaciais e de rede de contatos.
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