A demanda por energia cobra seu preço também em custos ambientais. Se é verdade que não se consegue conceber um país ou o mundo sem acesso à eletricidade, também é fato que a geração em grande escala precisa ser aprimorada para diminuir e reparar os prejuízos nos ecossistemas. No artigo The shadow of the Balbina dam: A synthesis of over 35 years of downstream impacts on floodplain forests in Central Amazonia, publicado na revista científica Aquatic Conservation: Marine and Freshwater Ecosystems, cientistas de diferentes áreas avaliam os efeitos da instalação da usina hidrelétrica Balbina no rio Uatumã, no município de Presidente Figueiredo, estado do Amazonas. Com construção iniciada em 1983 e início das operações em 1989, a usina gerou menos energia do que se esperava e mais prejuízos do que o planejamento se preocupou em prever. O estudo foi liderado pelo pesquisador Jochen Schöngart (INPA), que assina o artigo em coautoria com cientistas de instituições do Brasil, Alemanha, Holanda e Reino Unido, e conta com a participação da professora Juliana Rocha Duarte Neves (CFCAF/UFSB).
Para entender os efeitos da hidrelétrica de Balbina no rio Uatumã, a equipe coletou dados de imagens de radar, dados de séries hidrológicas, que registram as variações do ciclo do rio ao longo de 35 anos de funcionamento da barragem, informações sobre diversidade de espécies de árvores e características ecológicas das espécies dominantes, bem como dados dos anéis de crescimento dos troncos das árvores locais, pelas informações ali preservadas e resgatadas com técnicas de dendrocronologia e datação de radiocarbono. Os pontos de coleta ficam na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uatumã, localizada quilômetros rio abaixo da usina hidrelétrica. Além dos dados do rio Uatumã, a equipe de cientistas comparou também as florestas de igapó no rio Abacate, que não tem barragem instalada e é um afluente do Uatumã. Assim, foi possível sistematizar dados sobre as diferenças entre o rio afetado pela hidrelétrica e o seu afluente livre desse tipo de impacto ambiental.
A mortalidade de árvores não só reduziu a diversidade de espécies como também gerou grande quantidade de metano, composto que é danoso à camada de ozônio (acervo do professor Jochen Schöngart /INPA)
Com isso, ocorre o que os autores da pesquisa chamaram de "efeito sanduíche". A analogia explica o fato de que, nas áreas mais elevadas da floresta de igapós, as condições de extrema seca exerceram pressão sobre as espécies típicas ao favorecer espécies mais competitivas de árvores próprias da terra firme, causando redução da diversidade de espécies. A outra "fatia de pão" é o alagamento permanente das áreas mais baixas, que provocou a morte massiva das árvores que eram adaptadas ao ritmo entre inundação e seca, gerando os chamados "paliteiros", verdadeiros cemitérios de troncos. As áreas médias sofreram com a queda da diversidade de árvores, e estima-se que cerca de 12% das florestas de igapó morreram ao longo desse período.
Medindo perdas
O resultado é a perda de espécies importantes para as cadeias tróficas, que são as ligações de alimentação entre as espécies animais e vegetais, e a interrupção de serviços ecossistêmicos, como a captura de carbono pelas árvores e o ciclo hídrico pluvial, que transporta a umidade e as chuvas de um ponto ao outro no país e no mundo. Com a morte de tantas árvores em uma área alagada de cerca de 3 mil quilômetros quadrados, a formação de gases importantes para o efeito estufa é imensa, o que ajuda a piorar o quadro. O risco de incêndios também é relevante por conta dessas mudanças, em especial em anos em que ocorre o fenômeno El Niño.
A professora Juliana Rocha Duarte Neves, que ensina e pesquisa no Centro de Formação em Ciências Agroflorestais (CFCAF) da Universidade Federal do Sul da Bahia, integra a equipe responsável pelo estudo e pelo artigo. Ela explica que diversos ramos do conhecimento foram empregados para investigar os efeitos da hidrelétrica nas florestas de igapós do rio Uatumã, principalmente a Engenharia Florestal, a Ecologia e o Geoprocessamento. "Esse tipo de coleta de dados envolve um longo mapeamento e monitoramento das florestas alagáveis que ficam a jusante da barragem, além de uma coleta de material suficientemente robusta para trabalhar com escala de tempo. Um maneira fácil para visualizar isso é a dendrocronologia, ciência que estuda os anéis de crescimento das árvores. A partir dela é possível extrair séries cronológicas que contam, ano a ano, como as árvores cresceram, revelando não só a idade mas a sensibilidade aos eventos climáticos que ocorreram", detalha Juliana. As análises dos anéis de crescimento das árvores foram cruzadas com imagens de radar que mostram os anos de extrema seca e de extrema cheia do rio, o que permitiu entender e visualizar as mudanças na dinâmica de crescimento da floresta.
O efeito sanduíche indica os efeitos climáticos e o impacto provocado pela barragem da usina Balbina, interrompendo o ciclo natural e provocando fortes alterações nos ecossistemas locais (acervo do professor Jochen Schöngart /INPA)
A pesquisadora explica que os serviços ecossistêmicos que as florestas alagáveis desempenham são únicos, considerando que existem áreas úmidas em todos os biomas brasileiros. Mas as da Amazônia têm um padrão de inundação específico que condiciona um tipo de vegetação única e extremamente sofisticada: as florestas alagáveis de igapó. "Essas florestas são muito especiais porque elas possuem uma rica biodiversidade caracterizada inclusive, pela presença de espécies endêmicas, que desenvolveram estratégias de sobrevivência ao regime de seca e cheia dos rios, essas adaptações são expressas na anatomia, fisiologia e morfologia vegetal. Todas essas características fazem parte do sistema de manutenção desse ambiente, porque a vegetação atua na regulagem do clima e do sistema hidrológico e na manutenção da fauna, desde espécies aquáticas até outros seres terrestres. "Um exemplo está nos diferentes tipos de peixes que se alimentam das sementes que flutuam na água. Essas sementes, são na maioria das vezes, de espécies adaptadas à inundação; logo, os mesmos peixes que se alimentam nessas áreas, e o próprio pulso de inundação, atuam como dispersores de sementes", explica a engenheira ambiental e mestre em Clima e Ambiente.
A atividade pesqueira é uma das principais atividades econômicas e de subsistência da população ribeirinha. "Esse é apenas um exemplo da importância ecológica que esse sistema possui. Existe uma infinidade de serviços ecossistêmicos que poderiam ser elencados e acredito que alguns ainda nem conseguiram ter sua importância reconhecida. É por isso que o grupo de pesquisa (MAUA/INPA) vem trabalhando há anos para identificar e assegurar que esses serviços sejam mantidos", avalia a professora Juliana.
Com a interrupção do ciclo de cheias e de secas do Uatumã, as espécies de árvores acostumadas com a oscilação no nível da água passaram a ter um nível mínimo mais alto do que o suportável e constante (acervo do professor Jochen Schöngart /INPA)
Essa mudança no ciclo do rio provoca efeitos na composição florestal. Por isso nos níveis mais altos começam a aparecer espécies de terra firme, no nível médio a dominância de palmeiras (Astrocaryum jauari) e o nível mais baixo apresenta mortalidade da maioria das árvores e as espécies sobreviventes na verdade, são aquelas realmente mais fortes. A pesquisadora conclui: "Então o efeito é essa mudança na composição florística e uma nova configuração; ocorre, porém, a mortalidade de muitas árvores que possuem esses mecanismos de adaptação super refinados, ou seja, perda de biodiversidade, e dos macrohabitats, que desempenham importante serviços ecossistêmicos".
Soluções possíveis
Por fim, o artigo ressalta a enorme necessidade das agências reguladoras do Governo Brasileiro em incorporar os impactos severos que o planejamento e construção de barragens podem causar em toda a bacia Amazônica, sendo que este estudo científico pode ser utilizado como referência para outros empreendimentos dessa natureza. A professora Juliana explica que os impactos nos ambientes após a instalação das barragens ainda são tema de estudos recentes, e por essa razão são vitais para orientar ações de conservação. "Eu particularmente, que trabalhei na área e visitei diversas vezes essas florestas alagáveis, acho impossível recuperá-las, existe uma paisagem de árvores mortas em pé, chamada paliteiros, que é chocante e retrata muito bem essa realidade. Mas acredito que é possível evitar maiores danos e usar exemplos como o da hidrelétrica de Balbina para que o planejamento e construção de outros empreendimentos hidrelétricos levem em consideração as perdas, algumas irreversíveis, que podem acontecer às florestas alagáveis, principalmente na fase de realização dos estudos de impactos ambientais", detalha.
As florestas de igapós estão mais suscetíveis a eventos climáticos extremos por causa da degradação, tendência que é constantemente confirmada em estimativas climatológicas cada vez mais precisas. É por isso, diz a pesquisadora, que "os esforços do grupo e da ciência em fazer pesquisas nessas áreas tão remotas, muitas vezes de difícil acesso, e que exigem um grande esforço e dedicação, associados ao atual cenário do aquecimento global e mudanças climáticas, não devem ser em vão".
Se a área atingida pela hidrelétrica Balbina tem danos ambientais imensos, há algumas medidas de mitigação sugeridas no artigo. Para as áreas com barragens em operação, os pesquisadores indicam a simulação do ciclo cheia-seca com o uso do controle de vazão, orientado por fórmulas que equilibrem a necessidade de geração de energia elétrica de acordo com essa variação nos fluxos de água, aproximando o mais possível do ritmo natural. Para as barragens em fase de construção, os cientistas recomendam que se evitem as ocorrências de seca extrema, que vão provocar mortalidade de árvores e aumentam as chances de incêndios florestais.
Outro prejuízo causado pela interrupção do ciclo hidrológico pela barragem Balbina é a sucessão florestal e a redução da diversidade de espécies de árvores, fatores que vão afetar o clima e as relações de alimentação entre espécies animais e vegatais, as chamadas cadeias tróficas (acervo do professor Jochen Schöngart /INPA)
No caso do planejamento de novas barragens, a sugestão para mitigar prejuízos ambientais passa por ampliar a extensão de território avaliada no Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) para incluir as áreas alagáveis rio abaixo até o ponto de confluência com um afluente da mesma ordem de rio que esteja sem impactos, ou até a confluência com um rio de ordem superior, de modo a reduzir os efeitos da barragem. Novamente, a ideia é que a geração de eletricidade pelas usinas sejam calculadas considerando que a barragem libere água em quantidades e alternância suficientes para simular os ciclos hidrológicos típicos da região amazônica.
Os cientistas também alertam para a demanda de políticas públicas que conciliem desenvolvimento socioeconômico e conservação ambiental naquele bioma, estendendo a atenção para as condições de vida das populações locais. A professora Juliana chama a atenção para a dificuldade na definição do que, de fato, vem a ser energia limpa: "A cada dia que passa vemos novos estudos que mostram o que antes era considerado energia limpa e hoje não é mais. Ao mesmo tempo em que as iniciativas de conservação têm se tornado cada vez mais urgentes".
Essa observação, reforçada pelos resultados da pesquisa, é relevante para além da usina de Balbina, uma vez que tecnologias emergentes, como automóveis elétricos, trarão efeitos na demanda global por mais eletricidade. "Termino lembrando um conceito da metafísica numa visão mais filosófica, que fala sobre a existência das coisas, segundo a qual existem duas maneiras de algo existir: em potência e em ato. A conservação ambiental, ou seja, nesse caso, a manutenção da floresta em pé, com a fauna e flora preservada, e a produção de energia num planeta super habitado, extremamente tecnológico e cada vez mais moderno pode sim potencialmente existir, mas em ato, estamos longe, e caminhando a passos lentos para isso", pondera a cientista.
A pesquisa também foi divulgada no site do INPA neste link.
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